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quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O filho da morte

"no campo de refugiados"

“do livro Cronicando”
Mia Couto

A mulher estava morta, em puro e total falecimento. Seu ventre inchado recortava o inteiro azul. O cadáver, adiantado, não tinha salvação. À sua volta zunzunavam as moscas, devotas carpideiras.
Daquele corpo não se esperava senão o último pudor: ele que se cobrisse, em deferência à vida. Convidasse a poeira, invocasse a noite, fizesse o que entendesse mas poupasse o olhar dos viventes. Porque, naquele lugar, já não havia força para enterrar ninguém. Os defuntos se extinguissem às suas custas. Os outros, únicos residentes, estavam demasiado ocupados em sobrevivências.
Refugiados, ali restavam, sem fazerem favor à morte. Por que não cediam, noivos que estavam da ausência? Seria recordação da esperança, saudade de um antigamente?
Talvez, por isso, eles se tiravam da visão da defunta. Os refugiados se doseavam, nas aplicações da tristeza. Estarem vivos era seu resguardado segredo. Estivessem eles no território da vida e teriam seguido a tradição: levavam a grávida à cova e, antes de a sepultarem, lhe abriam o ventre. Nem que fosse para ganharem certeza sobre o sexo do feto. Mas agora não, todos se faziam ninguém.
E assim a morta teimava em sua solidão. Parecia assunto apenas capaz de esquecimento quando do corpo começou a emergir uma levíssima respiração. Parecia as costelas regressavam à sua imperceptível dança. O que seria?
- É inchaço de gases, digestão dos falecidos.
Os presentes se aproximaram, atraídos pelo lampejo daquela pele luzidia. Espreitaram, debicaram com os olhos. Foi quando, de entre as coxas da falecida, se viu o desfolhar de um pequeno corpo.
Os olhos se alargaram de espanto a espanto. A coisa carnuda progredia, excrescendo como um desembrulho, ventre afora. A morta estava, creia-se, em obras de parto. A vida, em seu corpo, fazia horas extraordinárias.
Ninguém mexeu, nenhuma mão se baixou. Fosse a criança filha da vida e as todas mulheres se anunciariam de tias, incontáveis seriam os peitos de amamentar. Mas aquele menino nascera da foz para a fonte, em avessa e agoirenta execução.
Nem valesse o recém-nascido declarar uma choradeira, beicinho a convidar compaixão. Os presentes já davam costas ao sucedido e se afastavam em arrastados passos. Parecia os pés deles eram pertença antecipada do chão, ambos em recíproco afecto.
Foi quando Tazarina se desapinhou da multidão. Ela tinha um ar de a si mesmo se faltar. Se conhecia por ser cabistonta, esquizofrénica, mazelenta e tão magra que, mesmo sem roupa, sua nudez não se notava. Nunca se lhe ouvia palavra, vogalzinha que fosse. Faltava-lhe o cabelo, restando-lhe duas magras tranças caídas sobre a testa. Tazarina sempre toda tremia, sequer suas mãos ela segurava. Bamboleava de várias bandas, parecendo ter mais joelhos que pernas, um número ímpar e infinito de tornozelos.
Sua única preocupação era apanhar cigarras. Junto das acácias ela chamava os bichos, imitando-lhes o canto. Segurava-lhes com seus dedos trémulos, abria um furo entre as asas e passava-lhes um fio. Depois amarrava-lhes nas orelhas, a servirem de brincos vivos e sonoros. As cigarras, diziam-se, eram elas que lhe tinham comido o cabelo.
Pois foi esta definhosa, maleijadíssima mulher que se achegou ao nascido e dele se ocupou. Levantou o orfãozito por um braço, erguendo-lhe acima da cabeça. Em seu desajeito devia magoar o pequeno. Contudo, mesmo em tal desconforto, o menino parou de chorar. E quando Tazarina lhe ofereceu o regaço, o menino procurou o seio dela, sem recheio. À medida que dava mama, Tazarina se ia perfilando mais e mais segura, capaz de exercer ternura. Seu corpo ensaiava mesmo a graça de ser mulher.
Foi então: os refugiados assistiram ao que nem davam crédito. Pois a pobre mulher começou a cantar. Já não se servia de rouquejos. Antes debitava doces embalos. Aos poucos ela se ia enchendo de corpo, seus seios se volumavam, os olhos se metalizavam, seus cabelos se preenchiam, capazes de pentes e penteados.
O menino se saciou e encostou no colo de Tazarina o seu primeiro sorriso. De longe, alguém atirou um pano que Tazarina apanhou e usou para cobrir a criança.
Depois ela se afastou em caminhar sereno, altiva como se houvesse estrada e o destino fosse sua exclusiva posse. A um momento, Tazarina se voltou para encarar a multidão. Nunca se viu, dizem, mãe em tanta compostura. O rosto dela merecia toda a luz. De cada lado, pendia a fulgência de ouro. As cigarras, seus antigos brincos, se haviam convertido em metal, com sonoras cintilâncias.
Refaçam-se agora as contas da humanidade habitável. Pois cada menino nascido faz nascer uma mãe de uma respectiva mulher. Assim, cada novo ser triplica o número dos viventes. Um filho, afinal, é quem dá à luz a mãe.

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