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terça-feira, 11 de outubro de 2011

A teoria de D. Casmurro

Publicado no "O Cónego", edição Outubro


O meu querido amigo Eduardo Pereira, pediu-me para fazer uma crónica nesta última edição da direcção cessante, convite que aceitei, apesar de andar arredado dos temas que marcam os jornais. Melhor, não ando arredado, mas sim cansado e impotente por ver assuntos seriíssimos parecerem banais de tanto virem escarrapachados de uma forma que quase parece comédia, não fosse o risco de virem a ser uma tragédia. Por isso, deixo aqui um ensaio em forma de farsa, uma mistura de ambas, onde o obvio é afinal muito difícil.



Houve em tempos alguém que vivia numa terra onde nada faltava. Vivia com a uma numerosa família, destas que se fabricavam no tempo em que não havia televisão nem contraceptivos para evitar que um olhar mais matreiro para os desarranjos que a esposa deixava expostos ao fim do dia, acabasse num delicioso arranjo debaixo dos lençóis. Com todos os filhos e filhas, noras e genros, netos e bisnetos, privados das modernices que mais tarde se vieram a conhecer, depressa encheram aquele lugar e o que era árvore orgulhosa e verdura soberba, deu lugar a prédios de muitos andares e ruas cheias de trânsito, com filhos e filhas, noras e genros, netos e bisnetos, sem tempo nem pachorra para um arranjinho à antiga. Esta história é conhecida. Vem no Génese, mas de um modo mais encriptado.


A certa altura, vendo que não era bem isto que tinham planeado para o futuro, esta numerosa família convocou os anciãos que tinham o poder de verem aquilo que eles próprios não conseguiam ver, apesar de estarem já embalsamados e encostados a um canto onde o pó não era mexido há muitas e muitas voltas de sol.


Reuniram-se, então, todos num conhecido parque da cidade e o porta-voz expôs o problema que os afligia. Era-lhes evidente que tinham crescido até onde as suas capacidades alcançavam, mas não havendo mais por onde crescer, preocupava-os a suspeita de que outra forma de vida pudesse advir, e o que agora é um pensamento orgulhoso da espécie e cidades soberbas de gente, desapareça no futuro, tal como o passado desapareceu, sendo agora uma lembrança etérea, que de facto existiu, mas que cabe cada vez menos no presente.


Após ouvir estas reflexões, os embalsamados fizeram um sinal de compreensão comum e, após um momento de silêncio, um deles tomou a palavra para dizer o seguinte:


- Meu filho, já ouviste certamente falar do Apocalipse, e sabes que todos os escritos antigos são para se concretizar, como tudo o que está feito e o que se está fazendo, estava já escrito, embora não com tanto pormenor – acrescentou em tom embaraçoso –, mas a última página da nossa família, ficou propositadamente por escrever. Se a página te servirá de mortalha ou se nela terás engenho para criar os teus filhos, só tu mo poderás um dia dizer. Mas vieste aqui pedir-me um conselho para apaziguar as tuas aflições e não irás sem ele; quando saíste de minha casa, moldaste o mundo à tua imagem e necessidades, pois para isso tens poder e engenho. Agora, se bem entendo as tuas palavras, pedes-me que te faça parar, pois tu próprio não tens mão nas sementes que lançaste. Deixa-me contar-te uma história, que um dia li escrita por um vosso conterrâneo, por sinal brasileiro, com ideias que vos poderão servir de valiosa reflexão. Recebeu-a também de um amigo e conto-a com algumas das suas próprias palavras para melhor explicar o seu pensamento. De um modo resumido, conto-te o que lhe contaram.


Segundo esta história, a vida é uma ópera escrita por Deus, o maior dos poetas, e musicada por um jovem e talentoso maestro chamado Satanás. Companheiro de Miguel, Rafael e Gabriel no conservatório celestial, zangou-se por ser muitas vezes preterido e organizou uma rebelião. Acabou por ser descoberto e foi expulso do conservatório, mas na saída, apoderou-se de um libreto de ópera que Deus havia escrito, mas que não lhe agradava inteiramente, e levou-o para o inferno para mostrar que tinha valor e, quem sabe, mais tarde reconciliar-se com o céu.


Compôs a partitura e, orgulhoso do seu feito, mostrou-a ao Senhor e suplicou-lhe que a escutasse e a mandasse executar. Deus, desinteressado, não quis ouvi-la, mas cansado das suas súplicas e misericordioso, consentiu que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Então criou um teatro especial, a Terra, mas recusou-se a assistir aos ensaios, ficando só com a parte dos direitos que lhe cabia, que eram a composição do libreto.


Diz o amigo deste vosso conterrâneo, que esta recusa criou alguns desconcertos que teriam sido evitados se Deus tivesse participado nas audições prévias, mas há também quem diga que a ópera não seria tão bela sem os desarranjos e desencontros entre os músicos, para fugir à monotonia, e assim se explicam o terceto do Éden, a área de Abel, os coros da guilhotina e escravidão e, acrescento eu, as guerras mundiais e até talvez, os colapsos bolsistas, crises financeiras e afins.


Os amigos do maestro acham que dificilmente se encontrará obra tão bem acabada, mas o mesmo não pensam os amigos do poeta que dizem ter sido corrompido o sentido da letra e ser a música, portanto, contrária ao drama. Há ainda os imparciais que dizem que o maestro abusa das massas corais, encobrindo-lhes o sentido. No entanto, as partes orquestrais são tratadas com grande perícia.


Para terminar e não te cansar em demasia com este resumo, digo-te que o mesmo conclui que a peça durará enquanto durar o teatro, não se sabendo quando será demolido. Entretanto, poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos de autor, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura; “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”.


Era isto que tinha para vos dizer e não sei se ficastes mais esclarecidos ou mais confusos, e não tendes obrigatoriamente de aceitar esta teoria que vos expus, pois não passo de um embalsamado poeirento e vós, sois quem tem a pujança de agir.
Com isto deram por terminada a reunião, voltando os anciãos para o meio do pó e os cidadãos para a sua vida normal, convencidos de que ainda teriam muito que tocar e cantar.

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