Descolar de escola, de aprender, de coisas, de mim...

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Moreira de Cónegos, Minho, Portugal
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segunda-feira, 7 de maio de 2012

Entre o ir e o ficar...


(publicado no jornal O Cónego em Outubro de 2004, com o título “Vai um conto verdadeiro!!!”)                                                                                       



Já alguma vez sentiu uma vontade sobre-humana de parar um comboio em andamento?

E então... qual é a sensação?

Num rotineiro dia de trabalho, o meu ganha-pão, vi um rapaz, cigano por engano da vida, que quase me deu força para semelhante façanha. Ainda bem que não o parei.

Estava a cumprir um dia normal de trabalho, quando a vila de Vilar Formoso me surgiu diante dos olhos ensonados. O sol, esse alegre regulador das estações, dava mostras de nascer e isso era agradável. Os planaltos carecem de sol para aliviar o muito frio que por vezes faz.

Chegado a esse bastião português, onde os forasteiros se confundem com a vida pacata dos residentes, logo me atarefei com as lides do meu trabalho, que consistia em abastecer os depósitos de combustíveis ali instalados. Na soalheira que levantava, um bando de miúdos brincava alheio ao movimento fronteiriço que, àquela hora da manhã, era reduzido; um grande alarido pairava entre eles. Eram ciganos, não diferentes dos miúdos que se vêem nos recreios das escolas, simplesmente crianças a brincar.

Entretanto, fui reparando que, entre eles, havia um que se arrastava penosamente como padecido de alguma maleita séria. Se fosse um adulto, diria que grandes problemas afectavam aquela pessoa. Mas não, era um miúdo, uma criança e, enquanto procedia ao laboro que me havia levado lá, já todos se me rodeavam numa brevíssima, bastante desinteressada curiosidade.

Estava o moço defronte do meu trabalho, quieto, silencioso, prostrado a distrair-me do meu ganha-pão. Pendurava-se com uma mão acima da cabeça e as pernas tombavam no passeio. A cara escondia-se num sovaco e deixava o sol aloirar ainda mais o seu cabelo claro. Tinha um belo cabelo! Não muito limpo, mas parecia que o sol se encarregava da higiene, tal era o brilho que lhe punha. Não era gordo, quase magro, tinha ombros largos à medida perfeita de uma criança e não parecia cigano. Os outros roçavam-se nele em pequenos encontrões como que a convidá-lo a correrias, mas não. Só quando o alarido dos seus berrinhos andasse, ele andaria também.

Com grande espanto meu, o velho, que era o receptor do meu ganha-pão, explicou-me as desgraças que correm o mundo. Aquele mesmo moço era cigano de mãe, e da nossa raça, por parte do pai. A mãe gostava do pai e os tios não gostavam do filho nem do pai. O pai tivera que fugir de morte certa pelo crime de amor por uma cigana e o filho era um fruto não desejado, que não deveria nunca ter caído da árvore que o gerou. Fiquei curioso e confuso, enquanto o velho me dizia com a sua imensa doçura nos olhos que aquele rapaz estava condenado a um destino muito duvidoso. -”A família cigana não o aceita nem o larga, antes o enche de quanta porrada existe, até que um dia...”- não acabou a frase.

Dito isto e, como que a confirmar as suas palavras, o velho deitou-lhe a mão aos cabelos e ergueu-lhe a cabeça para trás de maneira a que se lhe visse o rosto. Dei então com uns olhos que só as coisas mais belas possuem. Eram azuis, espertos, doces de inocência e estremeci, porque me pareceu um pobre animal abandonado, qual bicho menor aparecido no mundo e na impossibilidade de se afirmar por outros modos, falava com os olhos. Um sofrimento invisível vagueava por eles adentro. O rosto, claro, talvez de uns nove anos, era longo a terminar num queixo tenro e os lábios gretados e salientes puxavam a atenção pelo seu constante movimento de mudez. Garanto-lhes que faria inveja a qualquer modelo de revista infantil. Pela cabeça, a vasculhar, encontrei vários hematomas, uns moles como um melão podre, outros duros e salientes como raízes. Ao levantar a roupa das costas encontrei ossos calejados fora do sítio, negras espalhadas e feridas curadas ao esquecimento. Um miúdo que me viu mexer-lhe, aproximou-se e disse - “...os tios dão-lhe tanta porrada... ele vai morrer...”. E logo partiu outra vez a saltar e a rir, porque já o esperavam para um jogo qualquer. Sempre calado, o rapaz chegava-se às carícias que lhe fazia. Parecia que se lhe aliviava um sofrimento interminável e o meu afago, um sossego fresco em dores invisíveis, retraiam-no em algum ponto dorido. 

O velho continuava a falar; falava de guardas, de ciganos, de leis, de medos e fronteiras, de crimes e perseguidos. A sua voz suava mal nos meus ouvidos enquanto o rapaz procurava a mão em repetidos consolos. Deixava-se mexer como um animal. Fiquei possesso de tamanha revolta que mal me sentia. Queria chamar as poucas pessoas que preenchiam aquele grande largo a escassos duzentos metros do fim de Portugal. Mas a minha cabeça inundou-se-me afogada que tudo o que dizia ou pensava, não saía fora dela. Adivinhava à minha frente um crime hediondo, que ninguém por mais vil que fosse teria direito a praticar. Eu não podia deixar o miúdo ali. Decidi-me revoltado e descaí em mim, depois de observar a tamanha brutalidade que um miúdo, um menino de tão tenra idade, estava a sofrer. Cigano ou não, alguém tinha de fazer alguma coisa. Tudo seria melhor que uma morte anunciada e prevista. As provas estavam à minha frente, confirmadas pelo velho e pelos próprios amigos... ou irmãos, quem sabe. Tanto que seria da maneira mais cruel, inadmissível no nosso ou em qualquer tempo. Estaríamos nós numa sociedade tão bárbara que tal fosse consentido?! Iria trazer o rapaz comigo. Era ponto assente! Ele merecia que enfrentasse a maior mudança da minha vida. Tenho uma casa e família que o haveria de receber muito bem. Aquilo não se faz nem a um cão.

Entrei em confusão mental. Lutava para abandonar a fronteira, fugido como um ladrão. Um precioso roubo, uma vida indefesa que nada pedia e tudo se lhe roubava. Não há maior consolo do que salvar uma vida. Ainda por cima, tão bela e tão promissora. Tão jovem, meu Deus, aonde é que O tão proclamado estava?! Haveriam de vir atrás de nós, mas eu tinha argumentos para o meu acto. Na minha mente, ele já me pertencia. Já não era de ninguém. Achei-o e tinha-lhe direito. Mas, e as pessoas?! A sociedade civilizada?! Os amigos e vizinhos, e os inimigos e os outros que não conheço?! Como me irei explicar?! E a família que não é família, vai achar-se no direito, até para o maltrato! Irei preso. Será uma batalha com consequências imprevisíveis.

Com tantos pensamentos em turbilhão a pressionar, uma grande confusão se me instalou e as dúvidas cresciam como gigantes descontrolados a baterem-se furiosos e, quando um caía, outro logo se levantava a impedir sequer de me mexer.

Não sei quanto tempo permaneci indeciso, sem forças, entre o ir e o ficar. Talvez o necessário para perdê-las. Nem sei de que maneira caminhei de costas, nem como me despedi do menino que nunca por uma vez disse algo que se ouvisse, nem queixa, nem resposta às várias perguntas. Talvez fosse mudo, fui-me consolando. Talvez fosse engano meu ver as coisas tão negras.

A dúvida e o choque deste encontro, tão desfasado, tão inconsequente, ainda hoje me perseguem. Nada me pesa em consciência, é certo, apenas um grande, muito grande desconforto, como esse comboio que passa a grande velocidade e nada vejo... e mesmo que veja, não o consigo parar.

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