Descolar de escola, de aprender, de coisas, de mim...

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Moreira de Cónegos, Minho, Portugal
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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Revisitar I

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.


Ao meu amigo Paulo


Cresci numa creche até aos seis anos, altura em que fui para a escola. A creche era administrada por freiras, que estavam, por sua vez, afectas à Santa Casa da Misericórdia. Nunca me esqueci o nome da madre superiora; Irmã Xavier.

Era tão pequeno que pouco me lembro desses dias mas, há coisas que ficam sempre gravadas como uma mancha de pele ou um osso saliente onde passamos inconsciente as mãos. A marca está lá. E estão lá os dias num grande salão à roda de uma freira a bordar horas, toda de branco, gestos suaves como penas; não me lembro o seu nome, mas lembro o seu rosto, quase como um anjo. Dias brancos em tardes brancas são as minhas recordações. Há, porém, algo desse tempo presente nos dias de hoje; são os amigos. Sim, os amigos e amigas. Conhecemo-nos todos apesar dos anos distantes. Não sei que tipo de laço nos une, mas acho que consigo contar uma boa dezena deles.

Nesse tempo eu tinha um amigo que, segundo dizia a minha mãe, era o meu melhor amigo. Era o meu amigo Paulo. Recordo-me dele, tanto quanto me recordo de mim. E recordo-me sempre com a alegria à minha frente, como se ele, além de ser Paulo, fosse também alegre. E devia ser, certamente, como o são os muitos irmãos e irmãs que tinha. Não morava para os meus lados. Morava à distância suficiente para, durante alguns anos, poucos, estarmos separados pelas vidas que cada seguia. A escola, e a família. Por isso, depois de começarem as aulas, nunca mais vi o Paulo durante alguns anos, poucos, pensava eu. Poucos, mas eternos anos de criança. Perguntei por ele algumas vezes em casa e manifestei vontade de o visitar. Mas nunca o visitei. Um dia passei junto a casa dele, com a minha mãe, e quando pensei que finalmente o ia ver, minha mãe disse-me que tinha morrido. Eu continuava a ser criança, mas recordo-me que quase lhe chamei mentirosa. Minha mãe teve de me explicar que a leucemia era uma doença do sangue e foi isso que levou o meu amigo Paulo.

Aquilo, naquela idade, foi uma desilusão. Foi uma sapatada que me acertou tão desprevenido que provocou um vazio na ordem natural das coisas. Acho que a partir daí, compreendi que os amigos não duram sempre e muito menos são eternos. Foi essa a sensação que tive. Morreu o meu amigo Paulo antes que pudesse crescer como eu.

Revisitar II

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.



(…) À minha chegada, os rostos dos meus futuros colegas pareciam-me estranhos, não só por serem desconhecidos, mas também pelas maneiras e aparências. Havia um tão queimado que parecia negro, outro tinha um queixo muito quadrado e estava quase sempre calado e outro, pequenino com idade de grande e cheio de buracos na cara, e mais alguns, novos e velhos, todos a caminhar para os seus postos de trabalho ao som do apito do Sr. Neca, que era o encarregado (…)


O Sr. Neca




Nas “obras” havia dois tipos de classe distintas; os serventes e os “artistas”. Eu era servente, pela minha condição de trabalhador temporário e porque não dominava nenhuma técnica de construção. Dominava mais a escrita e a leitura, coisa que não fazia falta nenhuma para a profissão. Por isso, era muitas vezes criticado e até ameaçado quando usava termos mais “caros”. Se em alguma circunstância empregava uma palavra mais técnica ou expressão mais erudita, logo saía um coro de protesto com um sarrafo a caminho, o que me obrigava a ter cuidado com as palavras e até a brincar com alguma prudência.

Sucede que havia um rapaz, homem na idade, mas tratado como um moço por pensar muito devagar, que tinha um medo aflito das alturas. Era o João, com tantos salpicos na cara, que parecia um favo abandonado. Esse medo era conhecido de todos os colegas e, por tal facto, zombavam dele, porque, diziam, qualquer homem que se preze, consegue andar em cima de uma prancha, fosse qual fosse a altura. O João, nem a vinte centímetros do chão estava seguro.

Ora, um dia, não sei como, conseguiram pôr o João em cima de uma prancha a quase dois metros de altura. O moço berrava por quantos santos havia para que o pusessem no chão, mas o mais que conseguia era provocar mais gargalhadas e insultos. Uns encorajavam-no a descer, outros riam-se da triste figura do João, a tremer aflito abraçado à prancha, no maior desespero do mundo sem se atrever a descer pelos seus próprios meios. Aproximei-me com o alarido e fiquei indignado com o que via. Então não estavam a ver que o homem sofria de uma doença chamada vertigens, disse, com toda a consciência do mal que lhe estavam a fazer. Ó palavra aonde te meteste. Lá vinha sarrafo atrás de mim por me armar em doutor com os mais entendidos.

O certo é que as vertigens deram que falar na hora do almoço. De marmita na mão, os “artistas” discutiam a minha insolência por me meter em assuntos que não me diziam respeito e ainda por cima armado em doutor. Havia uma facção que me defendia, o “Fifas” e alguns mais velhos. Não sabiam o que queria dizer o palavrão, mas argumentavam que eu andava a estudar e decerto sabia mais do que eles. A discórdia aumentava e a autoridade dos “artistas” mais credenciados estava posta em causa; a coisa estava a azedar. Para resolver o assunto que, uma vez levantado, haveria de ter um fim, fizeram-se apostas. Haveriam de perguntar ao Sr. Neca, o encarregado, que coisa era essa afinal das vertigens. Se o encarregado confirmasse a doença, era indiscutível que eu percebia alguma coisa do assunto. Se não, as coisas continuariam como até então. O moço era um medricas e não havia doença que o salvasse.

Pois então, uns minutos antes do recomeço do trabalho, foi uma comissão falar com o Sr. Neca. O “Fifas” e o Luís do queixo muito largo iam à frente. Eu mais o Belchior, mais atrás. Eu, interessado no resultado e o Belchior, interessado na galhofa. Foi posta a questão pelo “Fifas”, em termos muito simples, sem denunciar as razões do interesse pela estranha palavra.

O encarregado, encontrava-se onde todos os dias se colocava durante largos minutos, numas contas que só ele sabia, à espera de ver os homens caminharem para os seus postos de trabalho. Era um homem de estatura mediana, com uma farda azul bastante limpa donde saía um rosto pequeno com um boné em cima. e tinha a perna apoiada numa meia parede, absorto nos seus pensamentos. Então, sem mostrar surpresa pela questão, rodou meio corpo para trás e disse com o queixo apoiado nas costas da mão:

- Isso…, parece-me que são umas verrugas que nascem na pele! É isso, são umas verrugas – confirmou.

Perdi a aposta e o crédito dos meus apoiantes.


(…) E tudo se passou ali, naquelas férias grandes, no meio do caminho que tantas vezes fazia de casa para a escola e da escola para casa. Em Setembro quando lá passei de livros debaixo do braço, creio que corei da face direita, com os olhos postos no chão à espera de algum sinal que de lá viesse, mas o trabalho falava mais alto e a vida continuava (…)

Revisitar III

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.



O carrinho




Os trabalhos numa obra de construção de edifícios podem ser duros, particularmente quando são feitos com recurso à força humana como era usual naquele tempo. Agora já não se cavam buracos do tamanho de pequenos poços à força dos braços, mas sim com a ajuda de máquinas cada vez mais sofisticadas e, uma grande parte dos alicerces daquela obra, foram trabalhados com o corpo. As máquinas existentes durante o meu primeiro trabalho, resumiam-se a duas gruas, um “dunper”, que era um pequeno veículo com uma grande bacia articulada em forma de triângulo escaleno com o vértice para baixo e uma betoneira para fazer grandes quantidades de betão, que nós conseguia-mos, enchendo-o de areia e cimento.

Eu era muito jovem, adolescente ainda, e o esforço só me fazia bem. Bem mais me fazia porque sabia que era um trabalho temporário. Apesar disso, a dureza dum chão cavado dias a fio até conseguir uma fundura, os calos que ganhava em cada jornada na betoneira para encher os buracos por nós abertos e os outros tantos por abrir, davam-me saudades de um pouco mais de conforto, de não escoar o suor todo para dentro do chão, que já durava há quase dois longos meses. Entretanto, alguns pilares iam crescendo, juntando-se em formas como um prémio para o nosso esforço. E foi com agrado que um dia o mestre me mandou trabalhar com o Luís. Ia ajudá-lo a construir umas paredes de tijolo num grande espaço entre pilares, que haveriam de ser as caves do edifício. Foram duas ou três semanas de sossego, a fazer pequenas quantidades de massa, a aprovisionar o tijolo ao pé dele, enquanto as paredes cresciam ao som da música que constantemente assobiava. O Luís era um homem novo, já com o serviço militar cumprido e não era de muitas palavras. Quando falava, fazia-o muito alto e era bastante sensato nos assuntos do seu conhecimento. Tinha um olhar fogoso, mesclado de castanhos e um queixo quadrado, desafiador.

Os dias tinham agora um aspecto mais suave e eu passava-os naquela rotina a acarretar massa e tijolo num grande carrinho, maior do que os normais, com dois pneus verdadeiros de cada lado e tão lançeirinho, que só lhe faltava o motor. Parecia uma camionetinha.

Numa sexta-feira, já perto do meio-dia, tinha o Luís erguido uma nova parede que já levava mais de metro e meio de altura por muitos de comprido quando me perguntou se havia muita massa no “amassadouro”. Disse-lhe que estava quase a acabar.

- Um carrinho? – perguntou ele.

- Sim – disse eu. E mandou-me trazê-lo. Ora enchi o carrinho quase até cima, o que era demasiado para um moço do meu peso, mas a manhã estava no fim e havia que despachar aquele resto. Desconfiado da empreitada, lá me aventurei ribanceira abaixo. Depressa me apercebi que não ia conseguir segurá-lo e já de rastos atrás dele, só tive tempo de gritar:

- Foooogeeee!!! – O Luís parou de colher na mão a olhar para o tresloucado veículo que descia como um louco desgovernado na sua direcção. Num salto, saiu-lhe da frente e caiu no chão. Em segundos, estavamos os dois a olhar um para o outro e para a parede que parecia fumegar. O Luís tinha restos de massa na cara e olhava para mim a bufar sem conseguir dizer uma palavra. Eu queria-me rir, mas não me atrevia. Tive de fugir quando se refez do susto, pois as coisas não estavam de feição para construir paredes.

Durante o resto do dia, não me pôs os olhos em cima. Andei pelas vinhas circundantes a comer uvas e, de vez em quando, aproximava-me de alguns colegas de trabalho para lhes dar uns cachos e saber notícias.