Descolar de escola, de aprender, de coisas, de mim...

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Moreira de Cónegos, Minho, Portugal
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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Revisitar II

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.



(…) À minha chegada, os rostos dos meus futuros colegas pareciam-me estranhos, não só por serem desconhecidos, mas também pelas maneiras e aparências. Havia um tão queimado que parecia negro, outro tinha um queixo muito quadrado e estava quase sempre calado e outro, pequenino com idade de grande e cheio de buracos na cara, e mais alguns, novos e velhos, todos a caminhar para os seus postos de trabalho ao som do apito do Sr. Neca, que era o encarregado (…)


O Sr. Neca




Nas “obras” havia dois tipos de classe distintas; os serventes e os “artistas”. Eu era servente, pela minha condição de trabalhador temporário e porque não dominava nenhuma técnica de construção. Dominava mais a escrita e a leitura, coisa que não fazia falta nenhuma para a profissão. Por isso, era muitas vezes criticado e até ameaçado quando usava termos mais “caros”. Se em alguma circunstância empregava uma palavra mais técnica ou expressão mais erudita, logo saía um coro de protesto com um sarrafo a caminho, o que me obrigava a ter cuidado com as palavras e até a brincar com alguma prudência.

Sucede que havia um rapaz, homem na idade, mas tratado como um moço por pensar muito devagar, que tinha um medo aflito das alturas. Era o João, com tantos salpicos na cara, que parecia um favo abandonado. Esse medo era conhecido de todos os colegas e, por tal facto, zombavam dele, porque, diziam, qualquer homem que se preze, consegue andar em cima de uma prancha, fosse qual fosse a altura. O João, nem a vinte centímetros do chão estava seguro.

Ora, um dia, não sei como, conseguiram pôr o João em cima de uma prancha a quase dois metros de altura. O moço berrava por quantos santos havia para que o pusessem no chão, mas o mais que conseguia era provocar mais gargalhadas e insultos. Uns encorajavam-no a descer, outros riam-se da triste figura do João, a tremer aflito abraçado à prancha, no maior desespero do mundo sem se atrever a descer pelos seus próprios meios. Aproximei-me com o alarido e fiquei indignado com o que via. Então não estavam a ver que o homem sofria de uma doença chamada vertigens, disse, com toda a consciência do mal que lhe estavam a fazer. Ó palavra aonde te meteste. Lá vinha sarrafo atrás de mim por me armar em doutor com os mais entendidos.

O certo é que as vertigens deram que falar na hora do almoço. De marmita na mão, os “artistas” discutiam a minha insolência por me meter em assuntos que não me diziam respeito e ainda por cima armado em doutor. Havia uma facção que me defendia, o “Fifas” e alguns mais velhos. Não sabiam o que queria dizer o palavrão, mas argumentavam que eu andava a estudar e decerto sabia mais do que eles. A discórdia aumentava e a autoridade dos “artistas” mais credenciados estava posta em causa; a coisa estava a azedar. Para resolver o assunto que, uma vez levantado, haveria de ter um fim, fizeram-se apostas. Haveriam de perguntar ao Sr. Neca, o encarregado, que coisa era essa afinal das vertigens. Se o encarregado confirmasse a doença, era indiscutível que eu percebia alguma coisa do assunto. Se não, as coisas continuariam como até então. O moço era um medricas e não havia doença que o salvasse.

Pois então, uns minutos antes do recomeço do trabalho, foi uma comissão falar com o Sr. Neca. O “Fifas” e o Luís do queixo muito largo iam à frente. Eu mais o Belchior, mais atrás. Eu, interessado no resultado e o Belchior, interessado na galhofa. Foi posta a questão pelo “Fifas”, em termos muito simples, sem denunciar as razões do interesse pela estranha palavra.

O encarregado, encontrava-se onde todos os dias se colocava durante largos minutos, numas contas que só ele sabia, à espera de ver os homens caminharem para os seus postos de trabalho. Era um homem de estatura mediana, com uma farda azul bastante limpa donde saía um rosto pequeno com um boné em cima. e tinha a perna apoiada numa meia parede, absorto nos seus pensamentos. Então, sem mostrar surpresa pela questão, rodou meio corpo para trás e disse com o queixo apoiado nas costas da mão:

- Isso…, parece-me que são umas verrugas que nascem na pele! É isso, são umas verrugas – confirmou.

Perdi a aposta e o crédito dos meus apoiantes.


(…) E tudo se passou ali, naquelas férias grandes, no meio do caminho que tantas vezes fazia de casa para a escola e da escola para casa. Em Setembro quando lá passei de livros debaixo do braço, creio que corei da face direita, com os olhos postos no chão à espera de algum sinal que de lá viesse, mas o trabalho falava mais alto e a vida continuava (…)

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