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Moreira de Cónegos, Minho, Portugal
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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Revisitar III

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.



O carrinho




Os trabalhos numa obra de construção de edifícios podem ser duros, particularmente quando são feitos com recurso à força humana como era usual naquele tempo. Agora já não se cavam buracos do tamanho de pequenos poços à força dos braços, mas sim com a ajuda de máquinas cada vez mais sofisticadas e, uma grande parte dos alicerces daquela obra, foram trabalhados com o corpo. As máquinas existentes durante o meu primeiro trabalho, resumiam-se a duas gruas, um “dunper”, que era um pequeno veículo com uma grande bacia articulada em forma de triângulo escaleno com o vértice para baixo e uma betoneira para fazer grandes quantidades de betão, que nós conseguia-mos, enchendo-o de areia e cimento.

Eu era muito jovem, adolescente ainda, e o esforço só me fazia bem. Bem mais me fazia porque sabia que era um trabalho temporário. Apesar disso, a dureza dum chão cavado dias a fio até conseguir uma fundura, os calos que ganhava em cada jornada na betoneira para encher os buracos por nós abertos e os outros tantos por abrir, davam-me saudades de um pouco mais de conforto, de não escoar o suor todo para dentro do chão, que já durava há quase dois longos meses. Entretanto, alguns pilares iam crescendo, juntando-se em formas como um prémio para o nosso esforço. E foi com agrado que um dia o mestre me mandou trabalhar com o Luís. Ia ajudá-lo a construir umas paredes de tijolo num grande espaço entre pilares, que haveriam de ser as caves do edifício. Foram duas ou três semanas de sossego, a fazer pequenas quantidades de massa, a aprovisionar o tijolo ao pé dele, enquanto as paredes cresciam ao som da música que constantemente assobiava. O Luís era um homem novo, já com o serviço militar cumprido e não era de muitas palavras. Quando falava, fazia-o muito alto e era bastante sensato nos assuntos do seu conhecimento. Tinha um olhar fogoso, mesclado de castanhos e um queixo quadrado, desafiador.

Os dias tinham agora um aspecto mais suave e eu passava-os naquela rotina a acarretar massa e tijolo num grande carrinho, maior do que os normais, com dois pneus verdadeiros de cada lado e tão lançeirinho, que só lhe faltava o motor. Parecia uma camionetinha.

Numa sexta-feira, já perto do meio-dia, tinha o Luís erguido uma nova parede que já levava mais de metro e meio de altura por muitos de comprido quando me perguntou se havia muita massa no “amassadouro”. Disse-lhe que estava quase a acabar.

- Um carrinho? – perguntou ele.

- Sim – disse eu. E mandou-me trazê-lo. Ora enchi o carrinho quase até cima, o que era demasiado para um moço do meu peso, mas a manhã estava no fim e havia que despachar aquele resto. Desconfiado da empreitada, lá me aventurei ribanceira abaixo. Depressa me apercebi que não ia conseguir segurá-lo e já de rastos atrás dele, só tive tempo de gritar:

- Foooogeeee!!! – O Luís parou de colher na mão a olhar para o tresloucado veículo que descia como um louco desgovernado na sua direcção. Num salto, saiu-lhe da frente e caiu no chão. Em segundos, estavamos os dois a olhar um para o outro e para a parede que parecia fumegar. O Luís tinha restos de massa na cara e olhava para mim a bufar sem conseguir dizer uma palavra. Eu queria-me rir, mas não me atrevia. Tive de fugir quando se refez do susto, pois as coisas não estavam de feição para construir paredes.

Durante o resto do dia, não me pôs os olhos em cima. Andei pelas vinhas circundantes a comer uvas e, de vez em quando, aproximava-me de alguns colegas de trabalho para lhes dar uns cachos e saber notícias.

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