(publicado no jornal O
Cónego em Outubro de 2004, com o título “Vai um conto verdadeiro!!!”)
Já alguma vez sentiu uma vontade
sobre-humana de parar um comboio em andamento?
E então... qual é a sensação?
Num rotineiro dia de trabalho, o
meu ganha-pão, vi um rapaz, cigano por engano da vida, que quase me deu força
para semelhante façanha. Ainda bem que não o parei.
Estava a cumprir um dia normal de
trabalho, quando a vila de Vilar Formoso me surgiu diante dos olhos ensonados.
O sol, esse alegre regulador das estações, dava mostras de nascer e isso era
agradável. Os planaltos carecem de sol para aliviar o muito frio que por vezes
faz.
Chegado a esse bastião português,
onde os forasteiros se confundem com a vida pacata dos residentes, logo me
atarefei com as lides do meu trabalho, que consistia em abastecer os depósitos
de combustíveis ali instalados. Na soalheira que levantava, um bando de miúdos
brincava alheio ao movimento fronteiriço que, àquela hora da manhã, era
reduzido; um grande alarido pairava entre eles. Eram ciganos, não diferentes
dos miúdos que se vêem nos recreios das escolas, simplesmente crianças a
brincar.
Entretanto, fui reparando que,
entre eles, havia um que se arrastava penosamente como padecido de alguma
maleita séria. Se fosse um adulto, diria que grandes problemas afectavam aquela
pessoa. Mas não, era um miúdo, uma criança e, enquanto procedia ao laboro que
me havia levado lá, já todos se me rodeavam numa brevíssima, bastante
desinteressada curiosidade.
Estava o moço defronte do meu
trabalho, quieto, silencioso, prostrado a distrair-me do meu ganha-pão.
Pendurava-se com uma mão acima da cabeça e as pernas tombavam no passeio. A
cara escondia-se num sovaco e deixava o sol aloirar ainda mais o seu cabelo
claro. Tinha um belo cabelo! Não muito limpo, mas parecia que o sol se
encarregava da higiene, tal era o brilho que lhe punha. Não era gordo, quase
magro, tinha ombros largos à medida perfeita de uma criança e não parecia
cigano. Os outros roçavam-se nele em pequenos encontrões como que a convidá-lo
a correrias, mas não. Só quando o alarido dos seus berrinhos andasse, ele
andaria também.
Com grande espanto meu, o velho, que era o receptor do meu
ganha-pão, explicou-me as desgraças que correm o mundo. Aquele mesmo moço era
cigano de mãe, e da nossa raça, por parte do pai. A mãe gostava do pai e os
tios não gostavam do filho nem do pai. O pai tivera que fugir de morte certa pelo
crime de amor por uma cigana e o filho era um fruto não desejado, que não
deveria nunca ter caído da árvore que o gerou. Fiquei curioso e confuso,
enquanto o velho me dizia com a sua imensa doçura nos olhos que aquele rapaz
estava condenado a um destino muito duvidoso. -”A família cigana não o aceita
nem o larga, antes o enche de quanta porrada existe, até que um dia...”- não
acabou a frase.
Dito isto e, como que a confirmar as suas palavras, o velho
deitou-lhe a mão aos cabelos e ergueu-lhe a cabeça para trás de maneira a que
se lhe visse o rosto. Dei então com uns olhos que só as coisas mais belas
possuem. Eram azuis, espertos, doces de inocência e estremeci, porque me
pareceu um pobre animal abandonado, qual bicho menor aparecido no mundo e na
impossibilidade de se afirmar por outros modos, falava com os olhos. Um
sofrimento invisível vagueava por eles adentro. O rosto, claro, talvez de uns
nove anos, era longo a terminar num queixo tenro e os lábios gretados e
salientes puxavam a atenção pelo seu constante movimento de mudez. Garanto-lhes
que faria inveja a qualquer modelo de revista infantil. Pela cabeça, a
vasculhar, encontrei vários hematomas, uns moles como um melão podre, outros
duros e salientes como raízes. Ao levantar a roupa das costas encontrei ossos
calejados fora do sítio, negras espalhadas e feridas curadas ao esquecimento. Um
miúdo que me viu mexer-lhe, aproximou-se e disse - “...os tios dão-lhe tanta
porrada... ele vai morrer...”. E logo partiu outra vez a saltar e a rir, porque
já o esperavam para um jogo qualquer. Sempre calado, o rapaz chegava-se às
carícias que lhe fazia. Parecia que se lhe aliviava um sofrimento interminável
e o meu afago, um sossego fresco em dores invisíveis, retraiam-no em algum
ponto dorido.
O velho continuava a falar; falava de guardas, de ciganos,
de leis, de medos e fronteiras, de crimes e perseguidos. A sua voz suava mal
nos meus ouvidos enquanto o rapaz procurava a mão em repetidos consolos.
Deixava-se mexer como um animal. Fiquei possesso de tamanha revolta que mal me
sentia. Queria chamar as poucas pessoas que preenchiam aquele grande largo a escassos
duzentos metros do fim de Portugal. Mas a minha cabeça inundou-se-me afogada
que tudo o que dizia ou pensava, não saía fora dela. Adivinhava à minha frente
um crime hediondo, que ninguém por mais vil que fosse teria direito a praticar.
Eu não podia deixar o miúdo ali. Decidi-me revoltado e descaí em mim, depois de
observar a tamanha brutalidade que um miúdo, um menino de tão tenra idade,
estava a sofrer. Cigano ou não, alguém tinha de fazer alguma coisa. Tudo seria
melhor que uma morte anunciada e prevista. As provas estavam à minha frente,
confirmadas pelo velho e pelos próprios amigos... ou irmãos, quem sabe. Tanto
que seria da maneira mais cruel, inadmissível no nosso ou em qualquer tempo.
Estaríamos nós numa sociedade tão bárbara que tal fosse consentido?! Iria
trazer o rapaz comigo. Era ponto assente! Ele merecia que enfrentasse a maior
mudança da minha vida. Tenho uma casa e família que o haveria de receber muito
bem. Aquilo não se faz nem a um cão.
Entrei em confusão mental. Lutava
para abandonar a fronteira, fugido como um ladrão. Um precioso roubo, uma vida
indefesa que nada pedia e tudo se lhe roubava. Não há maior consolo do que
salvar uma vida. Ainda por cima, tão bela e tão promissora. Tão jovem, meu
Deus, aonde é que O tão proclamado estava?! Haveriam de vir atrás de nós, mas
eu tinha argumentos para o meu acto. Na minha mente, ele já me pertencia. Já
não era de ninguém. Achei-o e tinha-lhe direito. Mas, e as pessoas?! A
sociedade civilizada?! Os amigos e vizinhos, e os inimigos e os outros que não
conheço?! Como me irei explicar?! E a família que não é família, vai achar-se
no direito, até para o maltrato! Irei preso. Será uma batalha com consequências
imprevisíveis.
Com tantos pensamentos em
turbilhão a pressionar, uma grande confusão se me instalou e as dúvidas
cresciam como gigantes descontrolados a baterem-se furiosos e, quando um caía,
outro logo se levantava a impedir sequer de me mexer.
Não sei quanto tempo permaneci
indeciso, sem forças, entre o ir e o ficar. Talvez o necessário para perdê-las.
Nem sei de que maneira caminhei de costas, nem como me despedi do menino que
nunca por uma vez disse algo que se ouvisse, nem queixa, nem resposta às várias
perguntas. Talvez fosse mudo, fui-me consolando. Talvez fosse engano meu ver as
coisas tão negras.
A dúvida e o choque deste
encontro, tão desfasado, tão inconsequente, ainda hoje me perseguem. Nada me
pesa em consciência, é certo, apenas um grande, muito grande desconforto, como
esse comboio que passa a grande velocidade e nada vejo... e mesmo que veja, não
o consigo parar.