Descolar de escola, de aprender, de coisas, de mim...

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Moreira de Cónegos, Minho, Portugal
Olá, espero que este blogue tenha alguma utilidade para si, que o visita. Encontrei aqui uma forma de partilhar alguma coisa com o resto mundo, porque também gosto de receber...

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Entre o ir e o ficar...


(publicado no jornal O Cónego em Outubro de 2004, com o título “Vai um conto verdadeiro!!!”)                                                                                       



Já alguma vez sentiu uma vontade sobre-humana de parar um comboio em andamento?

E então... qual é a sensação?

Num rotineiro dia de trabalho, o meu ganha-pão, vi um rapaz, cigano por engano da vida, que quase me deu força para semelhante façanha. Ainda bem que não o parei.

Estava a cumprir um dia normal de trabalho, quando a vila de Vilar Formoso me surgiu diante dos olhos ensonados. O sol, esse alegre regulador das estações, dava mostras de nascer e isso era agradável. Os planaltos carecem de sol para aliviar o muito frio que por vezes faz.

Chegado a esse bastião português, onde os forasteiros se confundem com a vida pacata dos residentes, logo me atarefei com as lides do meu trabalho, que consistia em abastecer os depósitos de combustíveis ali instalados. Na soalheira que levantava, um bando de miúdos brincava alheio ao movimento fronteiriço que, àquela hora da manhã, era reduzido; um grande alarido pairava entre eles. Eram ciganos, não diferentes dos miúdos que se vêem nos recreios das escolas, simplesmente crianças a brincar.

Entretanto, fui reparando que, entre eles, havia um que se arrastava penosamente como padecido de alguma maleita séria. Se fosse um adulto, diria que grandes problemas afectavam aquela pessoa. Mas não, era um miúdo, uma criança e, enquanto procedia ao laboro que me havia levado lá, já todos se me rodeavam numa brevíssima, bastante desinteressada curiosidade.

Estava o moço defronte do meu trabalho, quieto, silencioso, prostrado a distrair-me do meu ganha-pão. Pendurava-se com uma mão acima da cabeça e as pernas tombavam no passeio. A cara escondia-se num sovaco e deixava o sol aloirar ainda mais o seu cabelo claro. Tinha um belo cabelo! Não muito limpo, mas parecia que o sol se encarregava da higiene, tal era o brilho que lhe punha. Não era gordo, quase magro, tinha ombros largos à medida perfeita de uma criança e não parecia cigano. Os outros roçavam-se nele em pequenos encontrões como que a convidá-lo a correrias, mas não. Só quando o alarido dos seus berrinhos andasse, ele andaria também.

Com grande espanto meu, o velho, que era o receptor do meu ganha-pão, explicou-me as desgraças que correm o mundo. Aquele mesmo moço era cigano de mãe, e da nossa raça, por parte do pai. A mãe gostava do pai e os tios não gostavam do filho nem do pai. O pai tivera que fugir de morte certa pelo crime de amor por uma cigana e o filho era um fruto não desejado, que não deveria nunca ter caído da árvore que o gerou. Fiquei curioso e confuso, enquanto o velho me dizia com a sua imensa doçura nos olhos que aquele rapaz estava condenado a um destino muito duvidoso. -”A família cigana não o aceita nem o larga, antes o enche de quanta porrada existe, até que um dia...”- não acabou a frase.

Dito isto e, como que a confirmar as suas palavras, o velho deitou-lhe a mão aos cabelos e ergueu-lhe a cabeça para trás de maneira a que se lhe visse o rosto. Dei então com uns olhos que só as coisas mais belas possuem. Eram azuis, espertos, doces de inocência e estremeci, porque me pareceu um pobre animal abandonado, qual bicho menor aparecido no mundo e na impossibilidade de se afirmar por outros modos, falava com os olhos. Um sofrimento invisível vagueava por eles adentro. O rosto, claro, talvez de uns nove anos, era longo a terminar num queixo tenro e os lábios gretados e salientes puxavam a atenção pelo seu constante movimento de mudez. Garanto-lhes que faria inveja a qualquer modelo de revista infantil. Pela cabeça, a vasculhar, encontrei vários hematomas, uns moles como um melão podre, outros duros e salientes como raízes. Ao levantar a roupa das costas encontrei ossos calejados fora do sítio, negras espalhadas e feridas curadas ao esquecimento. Um miúdo que me viu mexer-lhe, aproximou-se e disse - “...os tios dão-lhe tanta porrada... ele vai morrer...”. E logo partiu outra vez a saltar e a rir, porque já o esperavam para um jogo qualquer. Sempre calado, o rapaz chegava-se às carícias que lhe fazia. Parecia que se lhe aliviava um sofrimento interminável e o meu afago, um sossego fresco em dores invisíveis, retraiam-no em algum ponto dorido. 

O velho continuava a falar; falava de guardas, de ciganos, de leis, de medos e fronteiras, de crimes e perseguidos. A sua voz suava mal nos meus ouvidos enquanto o rapaz procurava a mão em repetidos consolos. Deixava-se mexer como um animal. Fiquei possesso de tamanha revolta que mal me sentia. Queria chamar as poucas pessoas que preenchiam aquele grande largo a escassos duzentos metros do fim de Portugal. Mas a minha cabeça inundou-se-me afogada que tudo o que dizia ou pensava, não saía fora dela. Adivinhava à minha frente um crime hediondo, que ninguém por mais vil que fosse teria direito a praticar. Eu não podia deixar o miúdo ali. Decidi-me revoltado e descaí em mim, depois de observar a tamanha brutalidade que um miúdo, um menino de tão tenra idade, estava a sofrer. Cigano ou não, alguém tinha de fazer alguma coisa. Tudo seria melhor que uma morte anunciada e prevista. As provas estavam à minha frente, confirmadas pelo velho e pelos próprios amigos... ou irmãos, quem sabe. Tanto que seria da maneira mais cruel, inadmissível no nosso ou em qualquer tempo. Estaríamos nós numa sociedade tão bárbara que tal fosse consentido?! Iria trazer o rapaz comigo. Era ponto assente! Ele merecia que enfrentasse a maior mudança da minha vida. Tenho uma casa e família que o haveria de receber muito bem. Aquilo não se faz nem a um cão.

Entrei em confusão mental. Lutava para abandonar a fronteira, fugido como um ladrão. Um precioso roubo, uma vida indefesa que nada pedia e tudo se lhe roubava. Não há maior consolo do que salvar uma vida. Ainda por cima, tão bela e tão promissora. Tão jovem, meu Deus, aonde é que O tão proclamado estava?! Haveriam de vir atrás de nós, mas eu tinha argumentos para o meu acto. Na minha mente, ele já me pertencia. Já não era de ninguém. Achei-o e tinha-lhe direito. Mas, e as pessoas?! A sociedade civilizada?! Os amigos e vizinhos, e os inimigos e os outros que não conheço?! Como me irei explicar?! E a família que não é família, vai achar-se no direito, até para o maltrato! Irei preso. Será uma batalha com consequências imprevisíveis.

Com tantos pensamentos em turbilhão a pressionar, uma grande confusão se me instalou e as dúvidas cresciam como gigantes descontrolados a baterem-se furiosos e, quando um caía, outro logo se levantava a impedir sequer de me mexer.

Não sei quanto tempo permaneci indeciso, sem forças, entre o ir e o ficar. Talvez o necessário para perdê-las. Nem sei de que maneira caminhei de costas, nem como me despedi do menino que nunca por uma vez disse algo que se ouvisse, nem queixa, nem resposta às várias perguntas. Talvez fosse mudo, fui-me consolando. Talvez fosse engano meu ver as coisas tão negras.

A dúvida e o choque deste encontro, tão desfasado, tão inconsequente, ainda hoje me perseguem. Nada me pesa em consciência, é certo, apenas um grande, muito grande desconforto, como esse comboio que passa a grande velocidade e nada vejo... e mesmo que veja, não o consigo parar.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A teoria de D. Casmurro

Publicado no "O Cónego", edição Outubro


O meu querido amigo Eduardo Pereira, pediu-me para fazer uma crónica nesta última edição da direcção cessante, convite que aceitei, apesar de andar arredado dos temas que marcam os jornais. Melhor, não ando arredado, mas sim cansado e impotente por ver assuntos seriíssimos parecerem banais de tanto virem escarrapachados de uma forma que quase parece comédia, não fosse o risco de virem a ser uma tragédia. Por isso, deixo aqui um ensaio em forma de farsa, uma mistura de ambas, onde o obvio é afinal muito difícil.



Houve em tempos alguém que vivia numa terra onde nada faltava. Vivia com a uma numerosa família, destas que se fabricavam no tempo em que não havia televisão nem contraceptivos para evitar que um olhar mais matreiro para os desarranjos que a esposa deixava expostos ao fim do dia, acabasse num delicioso arranjo debaixo dos lençóis. Com todos os filhos e filhas, noras e genros, netos e bisnetos, privados das modernices que mais tarde se vieram a conhecer, depressa encheram aquele lugar e o que era árvore orgulhosa e verdura soberba, deu lugar a prédios de muitos andares e ruas cheias de trânsito, com filhos e filhas, noras e genros, netos e bisnetos, sem tempo nem pachorra para um arranjinho à antiga. Esta história é conhecida. Vem no Génese, mas de um modo mais encriptado.


A certa altura, vendo que não era bem isto que tinham planeado para o futuro, esta numerosa família convocou os anciãos que tinham o poder de verem aquilo que eles próprios não conseguiam ver, apesar de estarem já embalsamados e encostados a um canto onde o pó não era mexido há muitas e muitas voltas de sol.


Reuniram-se, então, todos num conhecido parque da cidade e o porta-voz expôs o problema que os afligia. Era-lhes evidente que tinham crescido até onde as suas capacidades alcançavam, mas não havendo mais por onde crescer, preocupava-os a suspeita de que outra forma de vida pudesse advir, e o que agora é um pensamento orgulhoso da espécie e cidades soberbas de gente, desapareça no futuro, tal como o passado desapareceu, sendo agora uma lembrança etérea, que de facto existiu, mas que cabe cada vez menos no presente.


Após ouvir estas reflexões, os embalsamados fizeram um sinal de compreensão comum e, após um momento de silêncio, um deles tomou a palavra para dizer o seguinte:


- Meu filho, já ouviste certamente falar do Apocalipse, e sabes que todos os escritos antigos são para se concretizar, como tudo o que está feito e o que se está fazendo, estava já escrito, embora não com tanto pormenor – acrescentou em tom embaraçoso –, mas a última página da nossa família, ficou propositadamente por escrever. Se a página te servirá de mortalha ou se nela terás engenho para criar os teus filhos, só tu mo poderás um dia dizer. Mas vieste aqui pedir-me um conselho para apaziguar as tuas aflições e não irás sem ele; quando saíste de minha casa, moldaste o mundo à tua imagem e necessidades, pois para isso tens poder e engenho. Agora, se bem entendo as tuas palavras, pedes-me que te faça parar, pois tu próprio não tens mão nas sementes que lançaste. Deixa-me contar-te uma história, que um dia li escrita por um vosso conterrâneo, por sinal brasileiro, com ideias que vos poderão servir de valiosa reflexão. Recebeu-a também de um amigo e conto-a com algumas das suas próprias palavras para melhor explicar o seu pensamento. De um modo resumido, conto-te o que lhe contaram.


Segundo esta história, a vida é uma ópera escrita por Deus, o maior dos poetas, e musicada por um jovem e talentoso maestro chamado Satanás. Companheiro de Miguel, Rafael e Gabriel no conservatório celestial, zangou-se por ser muitas vezes preterido e organizou uma rebelião. Acabou por ser descoberto e foi expulso do conservatório, mas na saída, apoderou-se de um libreto de ópera que Deus havia escrito, mas que não lhe agradava inteiramente, e levou-o para o inferno para mostrar que tinha valor e, quem sabe, mais tarde reconciliar-se com o céu.


Compôs a partitura e, orgulhoso do seu feito, mostrou-a ao Senhor e suplicou-lhe que a escutasse e a mandasse executar. Deus, desinteressado, não quis ouvi-la, mas cansado das suas súplicas e misericordioso, consentiu que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Então criou um teatro especial, a Terra, mas recusou-se a assistir aos ensaios, ficando só com a parte dos direitos que lhe cabia, que eram a composição do libreto.


Diz o amigo deste vosso conterrâneo, que esta recusa criou alguns desconcertos que teriam sido evitados se Deus tivesse participado nas audições prévias, mas há também quem diga que a ópera não seria tão bela sem os desarranjos e desencontros entre os músicos, para fugir à monotonia, e assim se explicam o terceto do Éden, a área de Abel, os coros da guilhotina e escravidão e, acrescento eu, as guerras mundiais e até talvez, os colapsos bolsistas, crises financeiras e afins.


Os amigos do maestro acham que dificilmente se encontrará obra tão bem acabada, mas o mesmo não pensam os amigos do poeta que dizem ter sido corrompido o sentido da letra e ser a música, portanto, contrária ao drama. Há ainda os imparciais que dizem que o maestro abusa das massas corais, encobrindo-lhes o sentido. No entanto, as partes orquestrais são tratadas com grande perícia.


Para terminar e não te cansar em demasia com este resumo, digo-te que o mesmo conclui que a peça durará enquanto durar o teatro, não se sabendo quando será demolido. Entretanto, poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos de autor, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura; “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”.


Era isto que tinha para vos dizer e não sei se ficastes mais esclarecidos ou mais confusos, e não tendes obrigatoriamente de aceitar esta teoria que vos expus, pois não passo de um embalsamado poeirento e vós, sois quem tem a pujança de agir.
Com isto deram por terminada a reunião, voltando os anciãos para o meio do pó e os cidadãos para a sua vida normal, convencidos de que ainda teriam muito que tocar e cantar.

domingo, 18 de setembro de 2011

Regresso ao passado

Recrear a época do primeiro milénio nos restos que permanecem dos edifícios e ruas de Guimarães. A Capital Europeia da Cultura em 2012 está a fazer um esforço para atrair visitantes e surpreendê-los. Esta imagem até parece real, e é-o certamente em locais pouco interessados em preservar a história.
A expressão do homem/actor, fez-me pensar.

domingo, 28 de agosto de 2011

Escrever um conto

Pela primeira vez escrevi um conto. Pela primeira vez, o meu objectivo começou por fazer uma história que fosse isso mesmo. Uma história para ser lida. Mas primeiro teria de escrevê-la. Então peguei no papel e rabisquei. As primeiras linhas desenharam um cenário. Um cenário com um personagem onde aparecia outro e mais outro, num determinado ambiente até que, enfim, a história começava. Depois o personagem começou a pensar, não eu, o personagem, pois era ele quem iria viver aquela história. O ambiente era agradável e ele, o personagem, tinha a incumbência de contá-la. Eu só o ajudava. Eu ajudei-o e ele ajudou-me a escrever "Os sapatos de palhaço", conto que conseguiu um modesto terceiro lugar num concurso literário, pois claro, da Câmara Municipal de Vizela.
É claro que foi ela que me disse; “escreve um conto”. E eu escrevi-o.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Revisitar I

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.


Ao meu amigo Paulo


Cresci numa creche até aos seis anos, altura em que fui para a escola. A creche era administrada por freiras, que estavam, por sua vez, afectas à Santa Casa da Misericórdia. Nunca me esqueci o nome da madre superiora; Irmã Xavier.

Era tão pequeno que pouco me lembro desses dias mas, há coisas que ficam sempre gravadas como uma mancha de pele ou um osso saliente onde passamos inconsciente as mãos. A marca está lá. E estão lá os dias num grande salão à roda de uma freira a bordar horas, toda de branco, gestos suaves como penas; não me lembro o seu nome, mas lembro o seu rosto, quase como um anjo. Dias brancos em tardes brancas são as minhas recordações. Há, porém, algo desse tempo presente nos dias de hoje; são os amigos. Sim, os amigos e amigas. Conhecemo-nos todos apesar dos anos distantes. Não sei que tipo de laço nos une, mas acho que consigo contar uma boa dezena deles.

Nesse tempo eu tinha um amigo que, segundo dizia a minha mãe, era o meu melhor amigo. Era o meu amigo Paulo. Recordo-me dele, tanto quanto me recordo de mim. E recordo-me sempre com a alegria à minha frente, como se ele, além de ser Paulo, fosse também alegre. E devia ser, certamente, como o são os muitos irmãos e irmãs que tinha. Não morava para os meus lados. Morava à distância suficiente para, durante alguns anos, poucos, estarmos separados pelas vidas que cada seguia. A escola, e a família. Por isso, depois de começarem as aulas, nunca mais vi o Paulo durante alguns anos, poucos, pensava eu. Poucos, mas eternos anos de criança. Perguntei por ele algumas vezes em casa e manifestei vontade de o visitar. Mas nunca o visitei. Um dia passei junto a casa dele, com a minha mãe, e quando pensei que finalmente o ia ver, minha mãe disse-me que tinha morrido. Eu continuava a ser criança, mas recordo-me que quase lhe chamei mentirosa. Minha mãe teve de me explicar que a leucemia era uma doença do sangue e foi isso que levou o meu amigo Paulo.

Aquilo, naquela idade, foi uma desilusão. Foi uma sapatada que me acertou tão desprevenido que provocou um vazio na ordem natural das coisas. Acho que a partir daí, compreendi que os amigos não duram sempre e muito menos são eternos. Foi essa a sensação que tive. Morreu o meu amigo Paulo antes que pudesse crescer como eu.

Revisitar II

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.



(…) À minha chegada, os rostos dos meus futuros colegas pareciam-me estranhos, não só por serem desconhecidos, mas também pelas maneiras e aparências. Havia um tão queimado que parecia negro, outro tinha um queixo muito quadrado e estava quase sempre calado e outro, pequenino com idade de grande e cheio de buracos na cara, e mais alguns, novos e velhos, todos a caminhar para os seus postos de trabalho ao som do apito do Sr. Neca, que era o encarregado (…)


O Sr. Neca




Nas “obras” havia dois tipos de classe distintas; os serventes e os “artistas”. Eu era servente, pela minha condição de trabalhador temporário e porque não dominava nenhuma técnica de construção. Dominava mais a escrita e a leitura, coisa que não fazia falta nenhuma para a profissão. Por isso, era muitas vezes criticado e até ameaçado quando usava termos mais “caros”. Se em alguma circunstância empregava uma palavra mais técnica ou expressão mais erudita, logo saía um coro de protesto com um sarrafo a caminho, o que me obrigava a ter cuidado com as palavras e até a brincar com alguma prudência.

Sucede que havia um rapaz, homem na idade, mas tratado como um moço por pensar muito devagar, que tinha um medo aflito das alturas. Era o João, com tantos salpicos na cara, que parecia um favo abandonado. Esse medo era conhecido de todos os colegas e, por tal facto, zombavam dele, porque, diziam, qualquer homem que se preze, consegue andar em cima de uma prancha, fosse qual fosse a altura. O João, nem a vinte centímetros do chão estava seguro.

Ora, um dia, não sei como, conseguiram pôr o João em cima de uma prancha a quase dois metros de altura. O moço berrava por quantos santos havia para que o pusessem no chão, mas o mais que conseguia era provocar mais gargalhadas e insultos. Uns encorajavam-no a descer, outros riam-se da triste figura do João, a tremer aflito abraçado à prancha, no maior desespero do mundo sem se atrever a descer pelos seus próprios meios. Aproximei-me com o alarido e fiquei indignado com o que via. Então não estavam a ver que o homem sofria de uma doença chamada vertigens, disse, com toda a consciência do mal que lhe estavam a fazer. Ó palavra aonde te meteste. Lá vinha sarrafo atrás de mim por me armar em doutor com os mais entendidos.

O certo é que as vertigens deram que falar na hora do almoço. De marmita na mão, os “artistas” discutiam a minha insolência por me meter em assuntos que não me diziam respeito e ainda por cima armado em doutor. Havia uma facção que me defendia, o “Fifas” e alguns mais velhos. Não sabiam o que queria dizer o palavrão, mas argumentavam que eu andava a estudar e decerto sabia mais do que eles. A discórdia aumentava e a autoridade dos “artistas” mais credenciados estava posta em causa; a coisa estava a azedar. Para resolver o assunto que, uma vez levantado, haveria de ter um fim, fizeram-se apostas. Haveriam de perguntar ao Sr. Neca, o encarregado, que coisa era essa afinal das vertigens. Se o encarregado confirmasse a doença, era indiscutível que eu percebia alguma coisa do assunto. Se não, as coisas continuariam como até então. O moço era um medricas e não havia doença que o salvasse.

Pois então, uns minutos antes do recomeço do trabalho, foi uma comissão falar com o Sr. Neca. O “Fifas” e o Luís do queixo muito largo iam à frente. Eu mais o Belchior, mais atrás. Eu, interessado no resultado e o Belchior, interessado na galhofa. Foi posta a questão pelo “Fifas”, em termos muito simples, sem denunciar as razões do interesse pela estranha palavra.

O encarregado, encontrava-se onde todos os dias se colocava durante largos minutos, numas contas que só ele sabia, à espera de ver os homens caminharem para os seus postos de trabalho. Era um homem de estatura mediana, com uma farda azul bastante limpa donde saía um rosto pequeno com um boné em cima. e tinha a perna apoiada numa meia parede, absorto nos seus pensamentos. Então, sem mostrar surpresa pela questão, rodou meio corpo para trás e disse com o queixo apoiado nas costas da mão:

- Isso…, parece-me que são umas verrugas que nascem na pele! É isso, são umas verrugas – confirmou.

Perdi a aposta e o crédito dos meus apoiantes.


(…) E tudo se passou ali, naquelas férias grandes, no meio do caminho que tantas vezes fazia de casa para a escola e da escola para casa. Em Setembro quando lá passei de livros debaixo do braço, creio que corei da face direita, com os olhos postos no chão à espera de algum sinal que de lá viesse, mas o trabalho falava mais alto e a vida continuava (…)

Revisitar III

É sempre bom revisitar textos dos quais já não nos lembramos. Estes, foram escritos durante a construção do meu dossier e gosto particularmente deles. Lembram-me que temos memórias e crescemos com elas, mesmo quando pertencem a alguém de quem já nos esquecemos.



O carrinho




Os trabalhos numa obra de construção de edifícios podem ser duros, particularmente quando são feitos com recurso à força humana como era usual naquele tempo. Agora já não se cavam buracos do tamanho de pequenos poços à força dos braços, mas sim com a ajuda de máquinas cada vez mais sofisticadas e, uma grande parte dos alicerces daquela obra, foram trabalhados com o corpo. As máquinas existentes durante o meu primeiro trabalho, resumiam-se a duas gruas, um “dunper”, que era um pequeno veículo com uma grande bacia articulada em forma de triângulo escaleno com o vértice para baixo e uma betoneira para fazer grandes quantidades de betão, que nós conseguia-mos, enchendo-o de areia e cimento.

Eu era muito jovem, adolescente ainda, e o esforço só me fazia bem. Bem mais me fazia porque sabia que era um trabalho temporário. Apesar disso, a dureza dum chão cavado dias a fio até conseguir uma fundura, os calos que ganhava em cada jornada na betoneira para encher os buracos por nós abertos e os outros tantos por abrir, davam-me saudades de um pouco mais de conforto, de não escoar o suor todo para dentro do chão, que já durava há quase dois longos meses. Entretanto, alguns pilares iam crescendo, juntando-se em formas como um prémio para o nosso esforço. E foi com agrado que um dia o mestre me mandou trabalhar com o Luís. Ia ajudá-lo a construir umas paredes de tijolo num grande espaço entre pilares, que haveriam de ser as caves do edifício. Foram duas ou três semanas de sossego, a fazer pequenas quantidades de massa, a aprovisionar o tijolo ao pé dele, enquanto as paredes cresciam ao som da música que constantemente assobiava. O Luís era um homem novo, já com o serviço militar cumprido e não era de muitas palavras. Quando falava, fazia-o muito alto e era bastante sensato nos assuntos do seu conhecimento. Tinha um olhar fogoso, mesclado de castanhos e um queixo quadrado, desafiador.

Os dias tinham agora um aspecto mais suave e eu passava-os naquela rotina a acarretar massa e tijolo num grande carrinho, maior do que os normais, com dois pneus verdadeiros de cada lado e tão lançeirinho, que só lhe faltava o motor. Parecia uma camionetinha.

Numa sexta-feira, já perto do meio-dia, tinha o Luís erguido uma nova parede que já levava mais de metro e meio de altura por muitos de comprido quando me perguntou se havia muita massa no “amassadouro”. Disse-lhe que estava quase a acabar.

- Um carrinho? – perguntou ele.

- Sim – disse eu. E mandou-me trazê-lo. Ora enchi o carrinho quase até cima, o que era demasiado para um moço do meu peso, mas a manhã estava no fim e havia que despachar aquele resto. Desconfiado da empreitada, lá me aventurei ribanceira abaixo. Depressa me apercebi que não ia conseguir segurá-lo e já de rastos atrás dele, só tive tempo de gritar:

- Foooogeeee!!! – O Luís parou de colher na mão a olhar para o tresloucado veículo que descia como um louco desgovernado na sua direcção. Num salto, saiu-lhe da frente e caiu no chão. Em segundos, estavamos os dois a olhar um para o outro e para a parede que parecia fumegar. O Luís tinha restos de massa na cara e olhava para mim a bufar sem conseguir dizer uma palavra. Eu queria-me rir, mas não me atrevia. Tive de fugir quando se refez do susto, pois as coisas não estavam de feição para construir paredes.

Durante o resto do dia, não me pôs os olhos em cima. Andei pelas vinhas circundantes a comer uvas e, de vez em quando, aproximava-me de alguns colegas de trabalho para lhes dar uns cachos e saber notícias.